Minha história com o CELIBATO
- Bárbara Ferreira
- 9 de dez. de 2024
- 7 min de leitura
Atualizado: 8 de jan.

Eu desconhecia o tema do celibato dentro do feminismo, mas, sendo feminista e apoiando outras mulheres, sempre ensinei o celibato como um processo de regeneração e encontro consigo mesma e derrubada do mito do amor romântico. Presenciar esse debate dentro do feminismo foi como um bálsamo e uma confirmação de que o caminho do celibato é reto, sem atalhos e que, de fato, é uma trajetória rumo à autonomia das mulheres.
Para começar, gostaria de desenhar para vocês meu caminho pessoal que me levou ao celibato por um período de um ano. Eu cresci no Norte do país, no interior do Mato Grosso, em uma família tradicional brasileira - pai abusador, mãe refém. Minha primeira relação (e paixão) foi com uma menina. Eu, por medo, ou excesso de honestidade mesmo, contei à minha mãe. De forma muito amorosa, ela me disse: "Filha, aqui eles não aceitam moça assim, que gosta de outra moça, você sabe que eles podem até te matar por isso?". Rapidamente o olhar de medo da minha mãe me convenceu que eu deveria engolir essa paixão e esse desejo pela minha vida e pela vida delas. Hoje me entendo bissexual, por opção, ou por opressão, não sei.
Eu cheguei ao celibato por uma busca espiritual. A espiritualidade sempre me pareceu um lugar seguro para habitar quando o mundo não bastava ou era inseguro e violento demais para mim. A espiritualidade me foi refúgio em momentos que não suportei mais caminhar com um alvo nas costas. Nessa busca, encontrei primeiro com meus vizinhos, indígenas das mais diversas etnias que viviam no Xingu, e tinham em Colíder, cidade onde cresci, seu ponto de apoio fora das aldeias. Meu pai queria tradutora e me colocou para ter aulas dos idiomas deles, sem saber que, assim, ele estava me dando a rota de fuga que salvaria a mim e a minha mãe mais tarde (mas isso é outra história).
Nesse encontro com a espiritualidade e filosofia indígena, eu percebi que em qualquer tratamento de saúde eles recomendavam o celibato. Não somente o celibato, como também um complexo conjunto de plantas, símbolos e ritos. Porém, o celibato era unanimidade: qualquer pessoa que precisava de equilíbrio, precisava do celibato.
Num dado momento, um pajé que conhecia muito bem minha história me propôs um tratamento no qual, entre outras coisas, a base era o celibato (os indígenas do tronco linguístico pano chamam isso de dieta e inclui reeducação alimentar, uso de plantas, rituais e o celibato completo).
A princípio seriam 4 meses nos quais eu não deveria ter relação sexual de nenhum tipo, não deveria dormir com ninguém, mesmo que não transasse. Era proibida qualquer forma de masturbação, filmes e músicas que continham erotismo e cenas sensuais. Também não deveria flertar, trocar olhares, trocar mensagens ou qualquer tipo de impulso que remetesse a um relacionamento afetivo-sexual.
A proposta me pareceu bastante desafiadora, mas eu vinha de uma sequência de relacionamentos tóxicos e estava sendo medicada por uma depressão. Eu estava decidida a cessar o ciclo vicioso das mulheres de minha família de se relacionar sem prazer e por pressão, então encarei o desafio - e foi muito difícil, até chegar no ponto de ser maravilhoso…
a parte difícil
No primeiro mês foi um verdadeiro terror: sonhava a noite toda com relações sexuais bem pornográficas, inclusive com situações de esturpo onde eu sentia prazer por ser violada. Essa perturbação acontecia TO-DAS as noites. Mesmo tendo sido educada no feminismo desde o comecça de minha vida sexual, e NUNCA ter acessado a pornografia, percebi que ela estava ali, enraizada profundamente dentro de mim e de tudo que eu entendia como sexo.
Lá pelo segundo mês de abstenção sexual, lembro que um dia acordei decidida a parar de ter aqueles sonhos perturbadores. Eu já não dormia bem, acordava cansada, e precisava retomar o controle da minha mente. Nessa mesma noite, quando o sonho começou a ir pra um lado erótico, consegui evitar, afirmar pra mim mesma, dentro do sonho, que eu não queria aquilo, que aquilo não deveria acontecer mais - e os sonhos pararam de acontecer.
Eu achei que isso seria o marco de uma melhor relação com esse celibato, mas as coisas foram se complicando. Comecei a perceber processos de apego profundo à imagem da “família” e do “relacionamento romântico”. Começou a surgir dentro de mim também um apego profundo àquela mulher “transante e sedutora” que eu havia pintado frente à sociedade.
Além disso, o exercício de não flertar me evidenciou que quase todas as minhas relações, principalmente com homens, eram pautadas, em algum nível, no flerte. Exercitar olhar nos olhos de um homem sem abrir brecha para um flerte foi muito complicado. Percebi que eu nunca estava a salvo, nem com o amigo, nem o marido da amiga, nem com o amigo do marido - o tempo todo os olhares eram permeados de sedução.
Ainda no quarto mês do longo ano celibatário, eu comecei a perceber como o sexo era um vício profundo, e à época cheguei até a comparar esse vício com o crack! Percebi que o mundo era VICIADO em sexo, e que todo mundo estava disposto a QUALQUER coisa pelo sexo: roubar, matar, trair, estuprar. Nós, mulheres, muitas vezes negociamos nossa dignidade em troca de alguns momentos de prazer (e na maioria das vezes sem prazer).

a glória
Chegou o fim dos primeiros 4 meses de celibato e o pajé me perguntou como eu estava indo. "Mal", eu disse, e pedi a ele que me desse mais tempo para viver e internalizar o celibato. Ele me recomendou então mais 4 meses. Eu, corajosamente, aceitei a missão.
Aí, uma virada inesperada: os 4 meses que vieram foram de GLÓRIA. Sério, GLÓRIA! Cheguei a pensar que talvez nunca mais romperia com o celibato. Eu amava quando me perguntavam 'E OS NAMORADINHOS?'. Só para poder responder, 'SOU CELIBATÁRIA e não me distraio mais com pares românticos'.
Em suma, me sentia sintonizada em outra frequência. A maior das GLÓRIAS alcançadas foi ter TEMPO. Parecia que eu tinha tirado muitas tarefas da minha agenda. O amor romântico consome demais nossa energia, dedicamos muito tempo à performance de conquista e joguinhos. Sem contatinhos era como se eu tivesse me colocado no centro da atenção pela primeira vez. Tinha mais tempo de me cuidar, de me abraçar, de me divertir genuinamente.
Todo esforço necessário na conquista, ir pra balada, ficar “bonita”, ser legal, divertida, interessante… tudo isso havia cessado e eu simplesmente podia VIVER. Ir pra balada se quisesse, com a roupa que quisesse, sorrir quando quisesse.
Eu sentia a pressão e “zuação” na roda de amigos, e de amigas, e na família, e nos jantares. Me sentia uma extraterrestre, pois parecia que eu era a ÚNICA pessoa do (meu) mundo que não vivia por um amor romântico ou por um encontro sexual.
Mas eu amava ficar e estar sozinha, me divertia profundamente dançando e cantando comigo mesma. Minha criatividade foi a mil, eu aprendi a pintar com aquarela, tocar pandeiro e tambor, fui muito mais atenciosa com as atividades físicas em nome da minha saúde. Eu fazia tudo por mim e para mim, por mais egoísta que isso soe aos ouvidos patriarcais. Eu era o centro da minha vida, pela primeira vez, aos 26 anos.
Posso dizer que estava feliz na minha solidão - e não há nada mais revolucionário e subversivo do que uma mulher feliz consigo mesma.
Lembro que um dia, em uma das INÚMERAS tentativas de “amigos”, “conhecidos”, “familiares” tentaram me tirar do celibato, alguém me disse que uma pessoa sozinha não existe. Que quem não é visto, nem tocado, não é lembrado. Sabe, eu não estava nem aí para isso. Agradeci por não existir, por não estar no cardápio de corpos desejantes.
Outra revolução foi descentralizar o prazer. Que sede a que temos por orgasmos, né? Que busca incessante por um instante de prazer… Foi profundamente libertador sentir prazer num banho de sol ou de mar, sentir prazer num alimento feito com amor, sentir prazer na brisa que toca a pele, sentir prazer ao ter um insight, uma reflexão filosófica, sentir prazer em fazer música, fazer arte. Prazer é tanta coisa para sermos escravas de um único meio de senti-lo. Percebi que a construção patriarcal havia limitado nossas possibilidades de sentir prazer, e aos poucos as resgatei.
Finalizei os 8 meses de celibato em estado de graça: os sintomas da depressão haviam desaparecido e eu estava confiante e criativa. A ansiedade e aquela sensação de estar sempre perdendo algo legal que está acontecendo lá fora foi substituída por uma sensação profunda de que o que eu vivia ali, na minha solidão, era suficiente.
Óbvio, eu não queria interromper o celibato, pensei que seria pra sempre, e na conversa com o pajé ele me recomendou mais 4 meses de celibato, o que acatei com muita honra, e gratidão. O celibato havia me curado de doenças reais, e também de vícios que eu nem sabia que tinha. Eu fui mais forte que a máxima “é impossível ser feliz sozinha” e entendi, através dos limites de meu próprio corpo, o conceito de AUTONOMIA EMOCIONAL.
de volta à ativa
Concluí um ano de celibato, e sentia que o ciclo havia se completado, disse ao pajé que tentaria me abrir ao encontro com outras pessoas, mas que se não rolasse, eu manteria o celibato. Aos poucos me permiti, primeiro me tocar. Nesse toque sereno em mim, vi que o que embalava minha imaginação erótica já não eram pessoas, ou objetos (vibradores e etc.) mas sim a natureza. Eu tinha orgasmos profundos debaixo da queda de uma cachoeira, e tive orgasmos também ao experimentar uma fruta muito doce que nunca conhecia (a granadilla). Orgasmos mesmo, de tremer as pernas e deixar ofegante.
A parte mais difícil foi olhar novamente nos olhos das pessoas, e ver aquela sede, aquela fome, aquele vício. Foi difícil me relacionar, demorei seis meses depois do fim do celibato para transar com alguém, já vivendo a masturbação, e já assistindo filmes e séries de novo. Defini minha sexualidade como bissexual lesbocentrada e comecei a luta (interna, externa e eterna) de me relacionar com mulheres. Ao me relacionar com homens, eles têm grande chance de sair, literalmente, de saco cheio, pois não vivo minha sexualidade para agradar ou conquistar. Não preciso performar nada para manter ninguém comigo, eu sei que quero viver em “um quarto todo meu” (como no livro de Virginia Woolf).
Ninguém tem o poder de abandonar aquela que vive bem sozinha. Ninguém. E essa é a segurança que, acredito eu, temos que construir para termos relações saudáveis. Hoje, vez ou outra, quando me sinto perdida, ou muito atravessada pelas historietas românticas, eu volto ao celibato, por 1 mês, ou por 1 semana, mas se for necessário faço mais um ano, e RECOMENDO!
O celibato me fez livre, e tenho absoluta certeza que ele libertará todas as mulheres que o praticarem de forma consciente, pautada numa etica feminista ou espiritualista.
Eu sou Bárbara Ferreira é historiadora, focada em plantas medicinais e etnobotânica, e se voce quer acompanhamento para viver um celibato consicente e emancipador agenda um atendimento individual, aqui pelo site mesmo. Bem vindas ao caminho sem fim e sem volta da autonomia emocional e sexual.
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