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TORNAR-SE ERVEIRA.


Foi um longo e dificil caminho até chegar ao ponto que as pessoas me perguntassem qual a minha profissão e eu respondesse: SOU ERVEIRA. Muitos malabarismos retóricos eu fazia para não dizer a verdade : sou Fitoterapeuta, parecia mais formal. Até preferi me intitular terapeuta holística, pois me parecia mais vendável, até chegar ao ponto ridículo de me dizer thetahealer só porque ali me davam um 'certificado internacional': de um técnica fajuta e cheia de apropriações culturais, mas ainda assim, parecia mais seguro do que me assumir ERVEIRA. Sou ERVEIRA, cuido das pessoas através das folhas, é isso que faço é o que sei fazer. 


Minha dificuldade em assumir isso não é só minha, eu sei, vem de um contexto social que marginaliza práticas de cuidado que não são acadêmicas, inclusive sendo crime previsto em lei. O 'curandeirismo'é criminalizado por ser, segundo o pode vigente, 'charlatanismo'. Mas mesmo com todo combate da sociedade essa função social não deixa, e nunca deixará de existir porque esse é um serviço essencial à vida. 


Cuidar através da natureza, das plantas, do barro, da água, do fogo, do ar, essa é a pratica original de cuidado, a mais antiga e inexorável forma de manter a vida.  Existe uma lei que proibe a pratica do "curandeirismo:

“Exercer o curandeirismo: I – prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância; II – usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; III – fazendo diagnóstico: Pena – detenção de seis meses a dois anos.” ART 284.


Essa lei tem uma raiz racista e misógina que vou tratar masi adiante, mas de fato há muito charlatanismo nesse mundo das "terapias alternativas' - a falta de um conselho profissional, a falta de um estatuto ético que defina o que é correto e o que é incorreto nesse meio é realmente preocupante - vimos assim surgir uma onda de terapias sem pé nem cabeça e, inclusive criminosas como a constelação sistemica familair, as 'terapias quanticas' e outras aberrações new age. Mas o cuidado através da espiritualidade e da natureza é uma prática tão antiga e enraizada que se confunde com os atos mais comuns como comer e e beber agua - e nada tem a ver com essas terapias inventadas, não validadas em comunidades. A pajelança, a ervaria, a parteria, o ayurveda, a medicina tradicional chinesa são praticadas por comunidades inteiras há milenios - não foi inventada por uma pessoa sem raiz coletivista e humanitaria (como o criador da cosntelacao e do thetahealing para citar poucos exemplos). Eu mudaria essa lei racista da constituição, tiraria o termo curandeirismo e substituiria por 'praticas quânticas da nova era' (risos nervosos).


Dito isso, penso como a marginalização das mulheres e do trabalho feminino tem muito a ver com esse apagamento da função da Ervaria - desde a caça às bruxas que começou lá pelos anos 1200 d.C é melhor para nós nos apagar, esconder, inventar qualquer nome ou qualquer malabarismo retórico para não dizer que trabalhamos com as ervas e ganhamos a vida assim.


A curanderia é a primeira e mais antiga forma de cuidado e é comum que nós, médicas sem jaleco que temos nosso consultório pé no chão e que prestamos um servico basilar especialmente 'onde não há médicos'. Mas para quem dita as leis parece crime cantar enquanto trata, limpar com galho de arruda ou, ainda mais perigoso 'fazer gestos'- meu deus, quanto risco oferece uma benzedeira quando encosta a mão na nossa cabeça né?!


Me lembro ainda de quando comecei a estudar a Parteria, lá por 2016, que minhas mestras tinham medo, panico de ir ao hospital caso alguma parturiente precisasse por conta da perseguição e da lei sempre ao favor das forcas colonialistas e eurocentricas.


Tem muito de racismo na perseguição da ervaria, mas tem mais de misoginia, essas são práticas femininas e que empoderam e dão protagonismo às mulheres, já percebeu a centralidade nas comunidades da pessoa que conhecem os matos que curam ? Quantos presentes, quantos convites, quanta gratidão uma erveira, parteira, curandeira recebe ? É muito perigoso pro patriarcado mulheres em posicao de respeito, então de forma institucionalizada empurraram esse serviço para as margens da sociedade.


E mesmo aquelas pessoas que não criminalizam de forma direta, e até procuram ajuda no conhecimento tradicional de erveiras ainda pensam que esse é um 'dom natural' e que deve ser doado, um serviço gratuito… Quem nunca ouviu : 'mas aquela erveira/raizeira/parteira/ cobra muito caro` ou ainda, '’a minha época benzer era caridade as mulheres não cobravam por isso.' Nos tempos modernos se pagam $1500 em um curso on-line para aprender a benzer… mas não se paga $200 para encontrar uma erveira no seu bairro.


Dentro desse contexto eu tentei fugir dessa senda de erveira, tentei seguir a carreira acadêmica, tentei com todo afinco me tornar empreendedora, mas a verdade é que nada disso me matava a fome da alma, essas atividades fora da ervaria não pagavam meus boletos kármicos. Por esse e por outras tornar-me erveira foi um longo e dolorido caminho, tive que rasgar muitas camadas, tive que, literalmente, me enterrar e passar horas debaixo da Terra para renascer ERVEIRA, com toda a dor e a delícia de ser o que se é. 


Eu sou erveira.


 
 
 

1 Comment


Marília Falleiros
Marília Falleiros
Nov 04, 2024

Trajetória inspiradora! Que todas nós possamos encontrar nosso caminho com coragem e sabedoria. 💗

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